quarta-feira, 19 de janeiro de 2011


Pintura de Salvador Dali

Não posso escrever poemas apenas com poesia. Poesia são sonos que vou dormir com o tempo que me resta até ser hoje. É poesia chegar ao fim do copo às vezes sem beber uma única palavra. Acrescentar mais uma hora à eternidade e entornar à tona da tua boca todos os desejos que sorvo quando não escrevo por ser de silêncio o tempo que te basta para ser feliz. São poesia corpos de água que peço ao céu para te embriagar com doses de esquecimento. São poesia sons que me ensurdecem pela garganta abaixo. Arcos de quem flecha uma janela no meio dum coração em pé de aços. Aguarelas de chuva que se fazem eco caindo em catadupa de duas gotas.
São poesia dardos em direcção ao oeste este incêndio à flor da pele este barco estes remos contra a maré estas asas este voo enevoado estes dedos de beliscar as estrelas depois das palavras. São poesia céus para voar transformados em obstáculo. Pontos cardeais que não chegam a nenhum poente. Caminhos de andar desnorteado entre o norte e o luar. Enxadas que descascam a paisagem. Sinais de fumo que nos atravessam em procissão poesia as fracturas de luz e traços de alegria e cores de azul. São de prosa as rosas do vento que nos revela até onde é infinito o sono que vamos levando aos poucos.
São de prosa.
A cama electrodoméstico de fazer metáforas quando a noite se enche de alma. A bússola que não me cura deste jeito imundo de apedrejar as palavras. O almoço que fica mais pequeno quando retiro metade para servir de jantar. O lavatório sujo de manhãs por esfregar. O pão duro matinal fora do alcance dos dentes. Os cigarros que perfumo como incenso. Doesse tudo isso como uma imperceptível bofetada de amor inscrita na face. Sou eu beijo ou inspiração boca a boca ao último verso. És tu a enlouquecer pouco a pouco horas acrescentadas no colo da eternidade. Somos nós corpo a corpo salpicados com um tiro de imaginação em papel de embrulhar sonhos.
Não posso escrever poemas apenas com poesia. Um dia não se cura de uma ferida para a outra e apenas saudade não basta para te esconder da minha ausência.


in ParadoXos

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