segunda-feira, 3 de outubro de 2011

As vozes dos outros

(...) e penso que o hábito precoce da solidão é um bem infinito. Ensina-nos, apenas em parte, a não precisar das pessoas. Ensina-nos também a amar mais os seres. Além disso, há um fundo de indiferença na criança que muito raramente é descrito. Não sei se as pessoas se sentem embaraçadas com o sentimento dessa indiferença, mas fico impressionada quando observo as crianças: vivem num mundo muito próprio. (...) Creio que os escritores, nas sua maioria, mesmo os "sérios", que falam da infância, se enganam sempre. Vêem a criança do seu ponto de vista de adultos, ou fazem um esforço enorme para se colocar no lugar do que imaginam ser uma criança. Tudo isto é demasiado sistemático, está demasiado próximo das nossas próprias convenções. Julgo que a criança se orienta na vida de forma muito vaga, com a surpresa do animal jovem, que vê ou encontra qualquer coisa pela primeira vez. As pessoas grandes que a rodeiam, cuja identidade nem sempre é muito clara - uma dizem-lhe ser, ao que parece, o pai, que se chama "papá" (mas o que é para ela um pai?), outra a mãe, e a terceira a criada, a cozinheira ou o carteiro - são todas "pessoas grandes", que têm uma certa importância mas, ao mesmo tempo, não estão muito ligadas à criança nem à sua vida própria, aliás impenetrável para aquelas pessoas. (...)



De Olhos Abertos - Marguerite Yourcenar - Conversas com Matthieu Galley
Relógio D'Água Editores, Junho de 2011

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